Advocacia Guerra

TJSP permite alteração em registro civil para constar nome social e “gênero não especificado ou agênero”

Uma pessoa não-binária, que não se identifica nem como homem nem como mulher, conseguiu a expedição de mandado de averbação ao oficial de registro civil de pessoas naturais para retificar o nome e incluir a informação de “gênero não especificado ou agênero”. A decisão unânime é da 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo – TJSP.

O processo foi extinto em primeiro grau sem resolução de mérito por falta de interesse de agir, já que o Supremo Tribunal Federal – STF, em 2018, reconheceu os direitos da transexualidade, permitindo as alterações dessa ordem pela via extrajudicial. No recurso, a alegação foi de que não se pretendia apenas alterar o gênero de nascimento, mas também o reconhecimento como uma pessoa não-binária.

Para o relator da apelação, o desembargador Carlos Alberto de Salles, a informação sobre gênero deve corresponder à realidade da pessoa transgênero, não se justificando distinção entre binários e não-binários. Para ele, a peculiaridade da pretensão da pessoa apelante, de não se identificar com gênero algum, justifica a judicialização do pedido.

“A não identificação do apelante com prenome e sexo atribuídos no nascimento geram sofrimento que justifica a autorização para a mudança, de maneira indistinta do que ocorre com transgêneros binários, sendo essa a única solução que se coaduna com os direitos à dignidade, intimidade, vida privada, honra e imagem garantidos pela Constituição Federal”, escreveu o relator. O número do processo não foi divulgado.

Desconstrução não é destruição

Para a tabeliã Carla Watanabe, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, a decisão representa um grande avanço. “Foi um acórdão, ou seja, uma decisão em segunda instância, e no maior tribunal do país. Segue ainda uma linha de decisões que reconhecem a existência do gênero neutro, vindas do Rio de Janeiro, Santa Catarina e Piauí”, destaca a especialista.

“Discute-se um paradigma no qual são realizadas classificações prévias, estruturais, e a pessoa deve se adequar a elas, com o sacrifício da própria dignidade. É por este motivo que Jacques Derrida (filósofo franco-magrebino, 1930-2004) afirmou que as oposições binárias se encontram na base do pensamento ocidental; nosso papel é desconstruí-las. A desconstrução não é destruição, mas um questionamento muito amplo.”

Sobre regramentos que abarquem a realidade das pessoas não-binárias, há o Provimento 122/2021, do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, expedido após pedido de providências do IBDFAM. Contudo, só é válido para recém-nascidos intersexo. “Ou seja, há uma ligação biológica com o sexo declarado como ‘ignorado’ no registro civil”, comenta Carla.

“As pessoas não-binárias, porém, podem se reconhecer dessa forma em qualquer momento de suas vidas. Não há necessidade de qualquer vínculo que as essencialize biologicamente. Elas podem ter sido designadas como do sexo masculino ou feminino quando do nascimento. Infelizmente, não existe nenhuma norma ou regramento que abranja essas pessoas”, explica.

Dissidentes de gênero

A tabeliã lembra que, na Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 4.275/2018, o STF reconheceu os direitos do trânsito entre os gêneros, mas ainda teve como ponto de chegada o único binário admitido: homem ou mulher. As pessoas não-binárias têm demandas diferentes, segundo Carla Watanabe, única tabeliã assumidamente transexual do país.

“Costumo dizer que somos todos ‘dissidentes de gênero’. Somos a parcela marginalizada que a modernidade se recusa a admitir, pois cruzamos a norma mais excludente da sociedade. Todavia, os não-binários não têm sequer a possibilidade de serem reconhecidos documentalmente, nem legalmente – ficam em um vácuo no Direito Previdenciário, por exemplo. Até tentativas de respeitá-los, como a linguagem neutra, é ridicularizada ou proibida”, lamenta.

No XIII Congresso do IBDFAM, realizado na semana passada, Carla Watanabe apresentou a palestra “Para além do binarismo”. Ela defendeu que operador do Direito não pode mais esperar que a pessoa à sua frente seja o sujeito de direito da modernidade: homem, branco, heterossexual, cisgênero, cristão e proprietário. Saiba mais.

Fonte: IBDFAM https://ibdfam.org.br/noticias/9091/TJSP+permite+altera%C3%A7%C3%A3o+em+registro+civil+para+constar+nome+social+e+%22g%C3%AAnero+n%C3%A3o+especificado+ou+ag%C3%AAnero%22

Decisão: 04/11/2021

Sobre o autor

Camila Guerra

Camila Guerra

Advogada inscrita na Subseção de Santa Catarina da Ordem dos Advogados do Brasil sob o n. 40.377. Advogada sócia-proprietária do Escritório Guerra Advocacia, inscrito na OAB/SC sob o n. 5.571. Graduação em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduação em Administração Empresarial na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Participação em Programa de Cooperação Internacional na Business School, Amiens (Ecole Supérieure de Commerce Amiens, Picardie, France). Pós Graduação em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera - Rede LFG. Especialização em Direito de Família e Sucessões pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM. Mentoria Avançada em Planejamento Sucessório e Prática da Constituição de Holding Patrimonial - Direito em Prática.  Associada ao Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Rolar para cima