Após manter relação com um homem por 23 anos, simultânea ao casamento dele, uma mulher pede na Justiça acesso aos bens inventariados da esposa falecida do companheiro. O relacionamento, as mortes dos cônjuges e o inventário ocorreram antes da Constituição de 1988.
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul – TJRS concedeu a ela o direito de ter acesso ao espólio da família, mesmo após inventário concluído para os filhos frutos do casamento. O caso agora será analisado no Superior Tribunal de Justiça – STJ.
Após a morte do homem, a autora da ação pediu o reconhecimento de união estável. O TJRS ratificou a existência da relação, e a mulher passou a ter direito a parte da herança deixada para a esposa de seu companheiro. A corte usou leis atuais para julgar os fatos que ocorreram antes das regras que regem a união estável, o que levou o caso ao STJ.
No recurso da defesa, que representa a família da cônjuge, é questionada a concessão do direito à autora da ação, situação classificada pelos advogados como “viagem na máquina do tempo”. Foi aplicado o Código Civil de 2002 e a Lei 9.278/1996, que trata da união estável, para julgar o pleito de uma relação terminada em 1991, quando a legislação em vigor era o Código Civil de 1916.
A autora da ação deseja anular o inventário da esposa, que morreu em junho de 1988. Se isso for aprovado e concedido pelo STJ, pode dar abertura para que se viabilize no Brasil a “partilha de três”, expressão usada pela ministra Maria Isabel Gallotti, em maio, quando pediu vista do processo. A Corte vai avaliar o pedido interposto pela família da falecida. A Procuradoria-Geral da República – PGR deu parecer favorável à defesa da esposa.
Conjugalidades simultâneas
Diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, o advogado Marcos Alves da Silva marcou presença no XIII Congresso Brasileiro de Direito das Famílias e Sucessões, na semana passada, com uma palestra sobre conjugalidades. “Na realidade brasileira, existem inúmeras famílias simultâneas, isto é, conjugalidades simultâneas. O grande problema é que a Justiça e o Direito fecham os olhos para essas situações”, critica.
“Essas relações por vezes são duradouras, longínquas, e costuma haver prole nos dois núcleos familiares, geralmente mantido por um homem com duas mulheres. Havendo famílias, núcleos ou conjugalidades simultâneas, estas produzem ou não efeitos jurídicos, são consideradas famílias ou não?”, indaga o especialista.
De acordo com Marcos, há fundamento na própria Constituição Federal para tal reconhecimento, já que o texto dá guarida a todas as famílias, independentemente de sua composição. Decisões como a da Justiça gaúcha não são vanguardistas, na opinião dele, mas seguem o que diz a Carta Magna.
“Com a Constituição, houve o rompimento da visão monolítica, em que o matrimônio é tido como sendo a única fonte e possibilidade de origem de uma família, que era dita, àquele tempo, como ‘legítima’, porque as demais estavam colocadas no campo da ilegitimidade e, portanto, da invisibilidade jurídica”, explica o advogado.
Cláusula constitucional de inclusão
Segundo Marcos Alves, o artigo 226, caput, da Constituição Federal traz uma cláusula de inclusão: a família, sem distinguir qualquer uma, é merecedora de especial proteção do Estado. “A união estável também abriu o conceito de conjugalidade. Hoje, prefiro dizer ‘conjugalidades’, porque a própria Constituição e o Código Civil, em seu artigo 1.723, inciso I, admitem a pluralidade de conjugalidades.”
“O dispositivo do Código Civil admite a possibilidade que uma pessoa, sendo separada de fato, constitua uma nova união estável, que é reconhecida por lei. Logo, uma pessoa que ainda é casada, mas separada de fato, constitui uma família que é reconhecida expressamente pelo Código Civil”, exemplifica Marcos.
Ele entende que a jurisprudência ainda não avançou o bastante para dar o devido enquadramento jurídico e os efeitos decorrentes das conjugalidades que existem paralelamente. “Se estas são reconhecidas socialmente, a elas não se pode negar um reconhecimento jurídico”, defende.
“Não é possível ao legislador nem ao julgador fazer este discrímen em relação a determinadas famílias. Então esse é um ponto que deve ser enfrentado com a devida serenidade, cuidado e assento em fundamentos constitucionais.”
STJ deve seguir entendimento do STF sobre o tema
Sobre o caso que teve origem na Justiça do Rio Grande do Sul, o advogado paranaense acredita que já há um destino certo no STJ. Isso porque o Supremo Tribunal Federal – STF, ao julgar recursos extraordinários aos quais foram imputados efeitos de repercussão geral, nos Temas 526 e 529, entendeu não ser possível reconhecer uniões estáveis paralelas tampouco simultâneas a um casamento.
O magistrado lembra que as decisões foram “em homenagem ao princípio da monogamia e o dever de fidelidade”, o que ficou expresso nas duas teses sustentadas pelo STF:
“É incompatível com a Constituição Federal o reconhecimento de direitos previdenciários (pensão por morte) à pessoa que manteve, durante longo período e com aparência familiar, união com outra casada, porquanto o concubinato não se equipara, para fins de proteção estatal, às uniões afetivas resultantes do casamento e da união estável.”
“A preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1723, §1º do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro.”
“Uma família que existe há anos a fio simplesmente é colocada no campo não alcançado pela tutela jurídica em homenagem a um suposto princípio e regra da monogamia, que existiria na Constituição. Não vejo em parte alguma da Constituição qualquer enunciado do princípio da monogamia”, opina Marcos.
Ele conclui: “Por isso, acredito que a decisão do TJRS será modificada quando o STJ analisar o recurso especial, seguindo o entendimento ao qual está vinculado, por força de efeito de repercussão geral, que foi dado aos dois recursos extraordinários julgados pelo Supremo”.
Decisão: 04/11/2021