O requisito da convivência pública para reconhecimento da união estável pode ser flexibilizado ao se tratar das relações homoafetivas. O entendimento é da 2ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), que considerou o contexto de preconceito da sociedade contemporânea ao reconhecer a união estável post mortem entre dois homens.
De acordo com o autor da ação, ele viveu com o companheiro até 2018, ano da morte. Durante quase três anos, os dois firmaram comunhão de vida pública, contínua e fiel, com o objetivo de constituir família. Além disso, construíram um imóvel juntos. Alega, então, haver provas suficientes da existência de união estável.
Em primeiro grau, foi declarada a existência da união estável desde novembro de 2016 até a data do óbito. Os pais do falecido recorreram, sob o argumento de que os dois apenas moraram juntos e dividiram contas, não configurando união estável. Defenderam que não foram preenchidos todos os requisitos legais, como o da publicidade da relação – “o mais importante”, segundo os genitores.
Outros critérios do Código Civil
No TJDFT, a decisão foi mantida. O colegiado destacou que, nesses casos, o pressuposto deve ser guiado pelos demais elementos, como prova documental e testemunhal de vida a dois, o que ficou demonstrado no caso em análise. Para os desembargadores, a relação atende aos demais critérios elencados pelo Código Civil.
O aspecto do convívio público não pode “guiar inteiramente a tomada de decisão” nos casos de relação homoafetiva. “Pensar o contrário importaria tomar o requisito da publicidade como barreira ao reconhecimento de uniões homoafetivas, no que tange ao cumprimento dos requisitos da convivência pública e do objetivo de constituir família previstos pela norma material”, diz o acórdão.
“Pelo exposto, a falta de maiores evidências públicas, o desconhecimento familiar acerca da relação e o fato de as partes apontarem estado civil ‘solteiro’ em instrumentos contratuais não são elementos suficientes a descaracterizar a união – a qual, repita-se, é uma situação de fato. Especialmente quando verificado, dentro de um acervo probatório amplo, o elemento anímico de compartilhar a vida e constituir família.”
Justiça deve olhar além para atender população LGBTI+
Membro da Comissão de Direito Homoafetivo do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), a advogada Chyntia Barcellos comenta a decisão. Para a especialista, o entendimento do colegiado foi acertado. “As provas da união estável de forma contínua, duradoura, com objetivo de constituir família foram mais robustas que o simples fato da não publicidade”, avalia.
Para Chyntia, a decisão do juízo de primeiro grau, abraçada também pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), observou essa fundamentação necessária. “Entendo que essa flexibilização de requisitos tem que ocorrer nos casos das uniões homoafetivas em razão do preconceito. A homofobia, ainda é recorrente no nosso país”, ressalta.
“Muitas pessoas LGBTI+ escondem sua condição sexual e identidade de gênero da família por medo de se assumir. O mesmo ainda ocorre no ambiente de trabalho. Embora tenhamos grandes avanços, o preconceito ainda existe, o que esbarra na publicidade das uniões homoafetivas”, comenta a advogada.
Ela observa que, em muitos casos, os casais vivem juntos, mas sustentam que são apenas amigos para não sofrerem com a discriminação e a rejeição de terceiros. “A decisão entendeu a necessidade de a Justiça olhar além nas questões que envolvem os direitos das pessoas LGBTI+”, conclui Chyntia.
Decisão: 02/09/2021