A teoria da perda de uma chance serviu como base para a absolvição pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça – STJ de um adolescente acusado de ato infracional análogo ao crime de homicídio tentado. A teoria foi debatida durante o XIII Congresso Brasileiro de Direito das Famílias e Sucessões, evento promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM no ano passado.
No caso dos autos, o adolescente, em situação de rua, golpeou a vítima com um paralelepípedo porque ela teria agredido sua namorada, grávida, e um amigo. A tese de legítima defesa, porém, não foi aceita.
As instâncias ordinárias haviam imposto ao adolescente a medida socioeducativa mais grave prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, com base apenas em depoimentos indiretos. Além do próprio acusado, não foram ouvidas as testemunhas oculares nem as pessoas diretamente envolvidas no fato, e não foi realizado o exame de corpo de delito na vítima.
Para o relator do recurso da defesa, ministro Ribeiro Dantas, o caso demonstra, claramente, a perda da chance probatória. “A investigação falha extirpou a chance da produção de provas fundamentais para a elucidação da controvérsia, postura que viola o artigo 6º, III, do Código de Processo Penal – CPP, o qual impõe à autoridade policial a obrigação de ‘colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias’.”
As instâncias ordinárias entenderam que houve excesso na legítima defesa, com base em depoimentos do bombeiro e da policial militar que atenderam a ocorrência quando a briga já havia terminado. Os depoentes, por sua vez, basearam seus relatos em informações de pessoas que estavam no local, mas que, por não terem sido identificadas, não foram formalmente ouvidas pela polícia, nem em juízo.
Hearsay testimony
A Quinta Turma fixou o entendimento de que o testemunho indireto (também conhecido como testemunho por “ouvir dizer” ou hearsay testimony) “não é apto para comprovar a ocorrência de nenhum elemento do crime e, por conseguinte, não serve para fundamentar a condenação do réu”. Segundo o ministro, a utilidade desse tipo de depoimento é apenas indicar ao juízo testemunhas efetivas que possam vir a ser ouvidas na instrução criminal, na forma do artigo 209, parágrafo 1º, do CPP.
O relator apresentou diversos entendimentos sobre o hearsay testimony no direito comparado, e ressaltou que o fato efetivamente ocorrido não corresponde, necessariamente, à percepção da testemunha – percepção esta que ainda pode se alterar com o passar do tempo. Esses limites da prova testemunhal, segundo ele, crescem exponencialmente quando se adiciona um intermediário, no caso do depoimento por “ouvir dizer”.
Para o ministro, procedimentos comuns que podem ser realizados pelo juízo para verificar a credibilidade e a solidez da narrativa do depoente ficam inviabilizados quando se trata de testemunho indireto, o qual subtrai das partes a prerrogativa – garantida pelo artigo 212 do CPP – de inquirir a testemunha e apontar eventuais inconsistências de seu relato.
Ribeiro Dantas destacou ainda que não há explicação no processo para o fato de as várias pessoas que presenciaram a briga não terem sido identificadas pela polícia para posterior depoimento – segundo ele, uma “gravíssima omissão”. Quanto à namorada, ao amigo e à vítima, pontuou que o Ministério Público desistiu de ouvi-los por serem pessoas em situação de rua, sem endereço para intimação, “mas não demonstrou ter envidado nenhum esforço para localizá-los”.
“A única pessoa ouvida em juízo e que realmente presenciou os fatos – o representado – teve sua justificativa completamente descartada pelo Estado, sem a apresentação de motivação válida para tanto, até porque não se produziu prova direta a esse respeito”, ponderou o magistrado.
O relator concluiu que o ônus de produzir as provas que expliquem a dinâmica dos fatos narrados na denúncia é da acusação, e não do réu. “Quando a acusação não produzir todas as provas possíveis e essenciais para a elucidação dos fatos – capazes de, em tese, levar à absolvição do réu ou confirmar a narrativa acusatória caso produzidas –, a condenação será inviável, não podendo o magistrado condenar com fundamento nas provas remanescentes.”
O número deste processo não é divulgado em razão de segredo judicial.
Teoria da perda de uma chance
Criada pelo Direito francês no âmbito da responsabilidade civil, a teoria da perda de uma chance, segundo o magistrado, foi transportada para o processo penal pelos juristas Alexandre Morais da Rosa e Fernanda Mambrini Rudolfo. “Quando o Ministério Público se satisfaz em produzir o mínimo de prova possível – por exemplo, arrolando como testemunhas somente os policiais que prenderam o réu em flagrante –, é, na prática, tirada da defesa a possibilidade de questionar a denúncia”, explicou Ribeiro Dantas.
O tema ganhou destaque na última edição do Congresso Nacional do IBDFAM. Na ocasião, o advogado Eduardo Lemos Barbosa, membro do Instituto, explicou que a perda de uma chance diz respeito àquilo que se deixou de ganhar. A teoria teve origem na doutrina francesa, com Louis Josserand (1868-1941).
No Direito de Família, ela ocorre, por exemplo, quando uma mãe não informa o pai do nascimento de um filho. A jurisprudência nesse sentido não é recorrente, segundo o palestrante. De acordo com o advogado, os casos de alienação parental poderiam figurar entre os julgados que aplicam a teoria, pois excluem a chance de convivência com o genitor alienado.
Decisão: 02/02/2022