Em decisão unânime, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu provimento ao recurso especial ajuizado por uma mãe que é alvo de processo movido pelo ex-marido, com objetivo de obrigá-la a prestar conta do uso da pensão alimentícia referente a um prazo de dois anos antes do ajuizamento da ação. Entendimento é de que, embora o Código Civil indique que o guardião que não detém a guarda deve supervisionar os interesses dos filhos, a possibilidade de solicitar informações acerca do bem-estar deles por meio do essencial direito e dever de fiscalização não é o suficiente para admitir o uso de prestação de contas para apurar gastos com pensão alimentícia.
O pedido do pai tem como base o parágrafo 5º do artigo 1.583 do Código Civil, que institui essa responsabilidade de supervisão ao genitor que não detém a guarda. Ele alega que o intuito é exercitar o poder familiar que lhe é inerente.
Segundo o homem, após o divórcio, a mãe passou a sonegar informações sobre o filho, e não atende seus telefonemas, não retorna mensagens escritas, não o autoriza a fazer contato direto com a escola onde a criança estuda e restringe a comunicação entre eles, impondo horários para conversas ao telefone.
O relator, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva destacou que a prestação de contas é ação proposta por quem deveria receber um balanço da administração de bens alheios, mas não a recebeu, bem como por aquele que a deveria prestar a outrem, porém se negou a fazê-lo. Não é o caso de quem recebe pensão alimentar, pois não há bens passíveis de restituição.
“Esse tipo de demanda não deve ser incentivada, sob pena de se patrimonializar excessivamente as relações familiares, sensíveis por natureza, especialmente em virtude da irrepetibilidade da verba alimentar e consequentemente, inexistência de crédito na forma mercantil, com a especificação das receitas e despesas. Ademais, a controvérsia poderá, no lugar de proteger, violar os interesses do menor vulnerável”, afirmou o relator. Ele foi acompanhado pelos ministros Marco Aurélio Bellizze, Moura Ribeiro, Nancy Andrighi e Paulo de Tarso Sanseverino.
Segundo o ministro, ampliar o uso excepcional da prestação de contas em pensão alimentícia pode gerar ações judiciais por mero capricho ou perseguição, algo que não é raro na esfera das relações íntimas familiares. “Permitir ações de prestação de contas significaria incentivar ações infindáveis e muitas vezes infundadas acerca de possível malversação dos alimentos, alternativa não plausível e pouco eficaz no Direito de Família.”
O relator concluiu que ‘eventual desconfiança sobre tais informações, em especial do destino dos alimentos que paga, não se resolve por meio de planilha ou balancetes pormenorizadamente postos, de forma matemática e objetiva, mas com ampla análise de quem subjetivamente detém melhores condições para manter e criar uma criança em um ambiente saudável, seguro e feliz, garantindo-lhe a dignidade tão essencial no ambiente familiar”.
Prestação de contas
Para o advogado e professor Rolf Madaleno, diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), a decisão volta à normalidade. “Sempre se disse que a ação de prestação de contas não é permitida, em regra, salvo exceções, no âmbito das ações de alimentos.”
Segundo ele, o Direito de Família não é palco para as partes ficarem se digladiando sob as escusas de saber onde e como está sendo gasto o dinheiro. “Não é o dinheiro de quem paga, é o dinheiro de quem recebe. E quem tem o filho sobre a sua administração direta é que tem a responsabilidade, que se presume seja de todo o progenitor, ainda que assim não ache aquele que é obrigado a prestar os alimentos.”
“Ultimamente tem aparecido muitas ações inclusive julgadas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) acerca da prestação de contas. Acho que isso tem se dado em especial por duas razões: a lei da guarda compartilhada, quando editada, disse que o cônjuge como sendo um co partícipe da guarda tem direito a prestação de contas; e o segundo motivo foi uma decisão recente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ordenando a prestação de contas (Resp 1814639/RS)”, explica o advogado.
Rolf avalia que as duas são situações absolutamente excepcionais. “A decisão que ordenou a prestação de contas não foi uma decisão genérica, foi uma decisão excepcional porque se tratava de um filho com necessidades especiais e havia uma clara desconfiança de que a mãe guardiã estava desviando esses recursos em detrimento da saúde do filho.”
“Houve uma interpretação equivocada daquele julgado, pois a prestação de contas das pensões alimentícias sempre foi e continuará sendo terreno praticamente vedado. O pedido de prestação de contas gera algo que está muito inerente no sentimento das pessoas que se separam, e sempre existiu na sociedade: um apego demasiado à questão da remuneração”, observa o especialista.
Dominação
O professor pontua que, em alguns casos, o pai que paga pensão alimentícia acha que esse dinheiro está sendo desviado, ou não gostaria que a mãe dos filhos comuns tivesse acesso a esse dinheiro. “Ele prefere manter esse controle, isto é uma coisa de dominação. E, como diz o julgado, às vezes, acaba sendo prejudicial para os próprios filhos.”
“Se nós permitirmos ações de prestação de contas sempre que houver desconfiança de que essa pensão alimentícia está sendo mal empregada ou desviada, isso vai gerar processo a todo tempo. A corda sempre vai arrebentar no lado mais fraco, que é o credor dos alimentos, que terá que usar recursos próprios para ficar se defendendo em ações que se mostram absolutamente desnecessárias”, pondera Rolf.
O advogado ressalta que, quando os alimentos são fixados, já se presume que foram fixados dentro das necessidades efetivas do filho. “Agora, se o dinheiro está sendo usado mais para uma situação ou menos para outra, isso depende da administração do genitor.”
“Com relação a quantidade não há dúvida, se houve um processo inteiro que estabeleceu o quantum da pensão alimentícia. Mas como esse dinheiro é gasto, só se houver uma prova muito contundente de efetivo desvio, senão é apenas mais um palco para esses ressentimentos que nunca terminam”, comenta o especialista.
Processo: STJ, REsp 1.767.456
Decisão: 14/12/2021