Nunca fui muito de assistir a novelas. Contudo, do pouco que acompanhei, desde que iniciei minha jornada no mundo jurídico, sempre fiquei intrigada em relação à assessoria jurídica dada aos grandes escritores, roteiristas e diretores. O mesmo acontecia com as reportagens divulgadas por grandes meios de comunicação, tais como editoras, jornais e, especialmente, colunas ou revistas de fofoca.
Assistia a alguns episódios e, mesmo diante da existência de alterações relativamente recentes para o mundo jurídico, sentia que as novelas transcorriam em um universo paralelo em que nem o ordenamento se atualizava, nem havia um Poder Judiciário capaz de atuar de forma mais enérgica para combater eventuais “deslizes” legislativos.
Pensava que talvez não fosse essa uma situação de desconhecimento e ignorância por parte daqueles que tomavam a frente da condução dos folhetins – provavelmente não. De certo, tratava-se de licença poética dos autores, os quais, de uso dessas artimanhas, tratavam de vilanizar determinados personagens utilizando-se do abuso de alguns direitos.
Passo a exemplos.
Não faz muito tempo, era possível localizar nas telenovelas, com muita facilidade, um enredo muito similar ao que passo a expor: a personagem principal, em um piscar de olhos, conhecia o amor de sua vida. Bastava um olhar para saber que a felicidade que ela até então conhecia não era nada perto da que viveria ao lado daquele até então desconhecido sujeito. Com a certeza e a segurança em relação a vida amorosa que possui a maioria dos protagonistas de filmes e telenovelas, logo nos primeiros capítulos, decidiam, então, os personagens largar tudo para viver aquele amor.
Contudo, havia um porém – sempre há um porém. Um dos personagens era casado com um sujeito ameno, sem grandes características, nem a intensidade dos grandes protagonistas. Ao tomar conhecimento da intenção de sua então cônjuge de dissolver o vínculo conjugal, todavia, aquele personagem até então insosso tornava-se o grande vilão. Utilizava-se ele de seu grande trunfo jurídico de prendê-lo à amada: a categórica decisão de não dar o divórcio.
Os capítulos que se sucedem também são já manjados pelo público: muitas lágrimas derramadas pela deliberação de oposição do personagem agora vilão de compreender o desinteresse de sua cônjuge em manter o vínculo matrimonial. Dessa forma, consegue o casado mantê-la a ele vinculada, presa, como uma espécie de prisão civil. Além das lágrimas, há a sensação de impotência, já que – conforme a condução do folhetim pelos seus autores – nada mesmo resta à personagem senão, irresignada, muito sofrer.
Contraditoriamente, o imbróglio somente finalmente se resolve quando o até então casal, cada um acompanhado de seu próprio advogado, dirige-se ao tribunal. Lá, em uma audiência tipicamente americana, aguardam a decisão do juiz, o qual bate o martelo (literalmente!) e profere a sentença oralmente, dissolvendo o vínculo matrimonial e declarando o tão esperado divórcio. Sanado, então, esse (pseudo) óbice, pode a personagem principal formalizar a constituição de seu novo vínculo matrimonial – o que normalmente ocorre nos últimos episódios, eternizando o final feliz.
Houve outro dilema jurídico na história televisiva recente que prendeu minha atenção. Em um certo momento da telenovela, compreendeu a personagem ser ela transgênero. Decidida a retificar seu registro civil para adequar-se à identidade autopercebida, a personagem, maior e capaz, solicitou o auxílio jurídico a um advogado. O causídico, por sua vez, solicitou a ela a documentação básica para iniciar o procedimento: a certidão de nascimento. Não dispondo do documento, solicitou a certidão aos pais, os quais, contrários à decisão da filha, negaram-se a fornecê-la.
Pronto. A partir desse momento, iniciou-se a fase de muito sofrimento por parte da personagem que, frustrada em ser Ivana, queria ser reconhecida como Ivan. Contudo, diante da negativa de seus pais em entregar a ela a sua certidão de nascimento, segundo a condução dos autores da novela, nada restava à personagem senão lamentar. Fiquei, mais uma vez, cismada. Não seria interessante informar ao advogado de Ivana que poderia ela dirigir-se ao Cartório de Registro Civil e solicitar uma via atualizada de seu registro de nascimento? Dessa forma, poderia ela prosseguir com o procedimento de alteração de seu prenome.
Minha cisma em relação a isso é apenas uma: são as telenovelas direcionadas ao grande público. E, a despeito da liberdade de expressão de que dispõem os autores de folhetins, é esse o recado que eles passam à massa. Possuem as novelas um caráter eminentemente recreativo, sendo entretenimento. Entretanto, além disso, possui a programação da televisão aberta também um caráter informativo e uma função social. Até os dias atuais, recebo solicitações de como proceder para dissolver o vínculo matrimonial já que o outro cônjuge “não quer dar o divórcio”.
Recentemente, li sobre o dilema em que vivia o ator Caio Blat em sua vida afetiva, matrimonial e patrimonial. Separado de fato de Maria Ribeiro há anos, vivia ele uma união estável com a também atriz Luisa Arraes. Contudo, pretendendo casar-se com Luisa, estava ele impossibilitado de assim o fazer: pendia, no processo de divórcio com Maria Ribeiro, uma questão litigiosa a respeito da partilha de bens de uma casa projetada por um famoso arquiteto argentino especialmente para Caio. Por essa razão, segundo a coluna jornalística, estaria Caio “preso” à Maria, somente podendo casar-se novamente assim que fosse essa questão patrimonial resolvida.
Fiquei, novamente, curiosa. Desconhecem os advogados de Caio a Súmula 197, do STJ, que permite que seja realizado o divórcio, ainda que não haja a partilha de bens na mesma ocasião? Em tempos em que se fala em divórcio extrajudicial, divórcio direto, divórcio online, divórcio consensual, divórcio amigável, e até mesmo em divórcio concedido de forma liminar, tudo isso para facilitar o procedimento de formalização de dissolução do vínculo conjugal e fugir do divórcio litigioso, desconhecem os advogados de Caio Blat o fato de que é possível fazer o divórcio independentemente da partilha de bens? Além disso, desconhecem os advogados de Caio os ensinamentos de Fredie Didier atualmente constantes do Código de Processo Civil de 2015 a respeito do procedimento de julgamento parcial do mérito, o qual põe fim à parte dos pedidos formulados na ação, por meio de diversas sentenças parciais de mérito?
Creio que não. Acredito que seja essa a abordagem dada ao caso pelas colunas jornalísticas com o intuito de vilanizar as pessoas físicas, tal como realizam os autores de folhetins com os personagens que se recusam a dar o divórcio ao cônjuge.
Por possuir a programação televisiva também um cunho pedagógico, o grande público, muitas vezes, toma exemplos dos folhetins para guiar suas condutas na “vida real”. Então, nesses casos, necessitando de auxílio jurídico, devem as pessoas buscarem orientação de advogado. Afinal, as novelas (apesar de muitas vezes serem baseadas em fatos reais) são apenas ficção, redigidas com base na liberdade de expressão e na licença poética de seus autores.