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Justiça concede guarda compartilhada enquanto ação de dupla maternidade segue em andamento

Decisões judiciais que reconhecem a dupla maternidade em casos de inseminação caseira se tornaram recorrentes no ordenamento jurídico brasileiro. Além da adesão crescente à prática por parte dos casais lésbicos – que consiste na inseminação de sêmen de doador em casa, diferentemente da reprodução assistida – o fenômeno mostra que as famílias homoafetivas estão cada vez mais recorrendo à Justiça para garantir que suas realidades sejam devidamente reconhecidas.

Neste mês, a 5ª Vara de Família e Sucessões de Guarulhos, em São Paulo, concedeu em sede de tutela de urgência a guarda compartilhada de uma criança a um casal de mulheres enquanto a ação de reconhecimento de dupla maternidade segue em andamento.

“No que toca ao pedido de antecipação de tutela, temos que se extrai da inicial e da farta prova documental a ela acostada a plausibilidade do direito das autoras ao exercício conjunto da guarda compartilhada do menor. Ao que tudo indica, ele foi muito querido e esperado pelas autoras e demais familiares, e as autoras já vêm, de fato, conjuntamente, exercendo sua guarda”, ressaltou, na sentença, a juíza Célia Magali Milani Perini.

Também recentemente, a 1ª Vara da Família e Sucessões de Santo Amaro, em São Paulo, julgou procedente o pedido de duas mulheres para serem registradas como mães. Elas viviam em união estável desde 2017, se casaram em setembro de 2021 e planejaram a gravidez com gameta doado por terceiro. O processo foi julgado 15 dias após o ajuizamento, dispensando maior dilação probatória.

“Para realização do projeto, por não disporem de recursos financeiros suficientes para o financiamento de método de reprodução assistida em clínica especializada, recorreram a método caseiro popularmente conhecido como ‘auto inseminação’”, explica, na decisão, a juíza Vanessa Vaitekunas Zapater, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM. A magistrada determinou a retificação de registro da criança, que fora registrada apenas com o nome da mãe biológica.

Casos vem crescendo na Justiça desde 2020

Membro do IBDFAM, a advogada Ana Carolina Santos Mendonça atuou nos dois casos. Ela conta que atendeu o primeiro caso de dupla maternidade com inseminação caseira em janeiro de 2020. Desde então, foram 37 sentenças favoráveis, 11 no ano passado e outras 26 até outubro de 2021 – uma delas, divulgada pelo IBDFAM em agosto.

“Os casais homoafetivos já buscavam a inseminação caseira há muitos anos. Temos precedentes de 2003, por exemplo. O que ocorre é que esses casais já vivenciaram diversas realidades jurídicas distintas, sendo diversos os caminhos possíveis para se alcançar a dupla maternidade. Até 2016, cada advogado apresentava uma solução jurídica distinta para a questão. Uns orientavam a adoção unilateral, outros o reconhecimento da filiação socioafetiva”, explica Ana Carolina.

Ela lembra que entre 2016 e 2017 esteve em vigor o Provimento 52 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, que versava também sobre a doação voluntária de gametas e foi caminho para se alcançar o registro de maneira extrajudicial. O Provimento 63/2017 retirou a menção à doação voluntária de gametas, mas passou a autorizar o reconhecimento da filiação socioafetiva sem limite de idade, o que também foi utilizado como alternativa para o registro sem a necessidade de judicialização da questão.

Em 2019, o Provimento 63 foi parcialmente revogado pelo Provimento 83, que instituiu um limite mínimo de 12 anos de idade para o reconhecimento da filiação socioafetiva. Isso passou a impedir que esses casais regularizassem o registro logo após o nascimento pela via extrajudicial, restando tão somente a alternativa da ação judicial para o registro contemplando a dupla maternidade.

Verdade parental

No processo mais recente, ela destaca que a questão foi julgada 15 dias após o ajuizamento, dispensando maior dilação probatória. “O que me chamou a atenção quando atendi meu primeiro caso foi o relato de casais que buscavam orientação jurídica sobre como proceder e eram orientados que nada poderia ser feito até o nascimento da criança. Eu já atuava há alguns anos com reprodução humana assistida e como advogada LGBTQIA+ estudiosa e pesquisadora da questão já tinha conhecimento sobre o assunto.”

A advogada sabia, por exemplo, de um importante precedente da Comarca de Santos, com autorização do juiz Frederico Messias para emissão da declaração de nascido vivo e da certidão de nascimento em nome das duas mães e do pai que participou como doador no projeto parental do casal, em formato da coparentalidade. “Caso interessantíssimo em que a criança já nasceu albergada pela multiparentalidade.”

Inconformada com os entendimentos acerca da impossibilidade de se tomar uma providência antes do nascimento, a advogada passou a ajuizar ainda no curso da gestação alvará judicial junto às varas de família e sucessões solicitando que a emissão da Declaração de Nascido Vivo – DNV, bem como da certidão de nascimento fossem emitidas de acordo com a verdade parental daquelas crianças. “E, por se tratar de inseminação caseira, que também fosse, no ato do registro, afastada a exigência do documento previsto no Provimento 63 do CNJ.”

Direitos devem ser assegurados ainda na gestação

Segundo Ana Carolina, o cerne da questão é reconhecer que, em uma família homoafetiva, quando um dos pares engravida, a mãe socioafetiva é tão mãe quanto a gestante. “Tal maternidade deve ser reconhecida de pronto e ainda no curso da gestação, de forma a assegurar os direitos de ambas as mães e principalmente da criança.”

“Tão somente tal reconhecimento, embasado no respeito ao princípio do livre planejamento familiar e na presunção de filiação prevista no artigo 1.597, inciso V do Código Civil terá o condão de assegurar direitos básicos e necessários a serem contemplados e considerados já nas primeiras horas do nascimento, como acompanhamento ao parto, lactação da mãe não gestante, acesso e acompanhamento a UTI neonatal, direito ao nome, a guarda, a convivência, alimentos e sucessórios, amparando por completo as famílias LGBTQIA+.”

Como docente e ativista LGBTQIA+, Ana Carolina tem uma forte atuação nas redes sociais, em que divulga a temática e também promove iniciativas em prol dessa população. Ela relata a formação de grupos para candidatos à doação de material genético e compartilhamento de sentenças favoráveis, a fim de que estas auxiliem outras possibilidades jurídicas.

“As decisões recentes demonstram a visibilidade e reconhecimento que essas famílias vêm alcançando dia a dia. A dupla maternidade é consequência do exercício ao livre planejamento familiar daquela família. O Poder Judiciário reconheceu essa família e a possibilidade de seu planejamento como melhor aprouver ao casal. Assim, é possível se entregar a melhor justiça, a isonomia de tratamento e a erradicação do preconceito.”

Fonte: IBDFAM https://ibdfam.org.br/noticias/9031/Justi%C3%A7a+concede+guarda+compartilhada+enquanto+a%C3%A7%C3%A3o+de+dupla+maternidade+segue+em+andamento

Decisão: 21/10/2021

Sobre o autor

Camila Guerra

Camila Guerra

Advogada inscrita na Subseção de Santa Catarina da Ordem dos Advogados do Brasil sob o n. 40.377. Advogada sócia-proprietária do Escritório Guerra Advocacia, inscrito na OAB/SC sob o n. 5.571. Graduação em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduação em Administração Empresarial na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Participação em Programa de Cooperação Internacional na Business School, Amiens (Ecole Supérieure de Commerce Amiens, Picardie, France). Pós Graduação em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera - Rede LFG. Especialização em Direito de Família e Sucessões pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM. Mentoria Avançada em Planejamento Sucessório e Prática da Constituição de Holding Patrimonial - Direito em Prática.  Associada ao Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM.

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