Decisões recentes reafirmam a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça – STJ, fundamentada pela doutrina da proteção integral e do melhor interesse da criança e do adolescente, princípios também preconizados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8.069/1990) e que norteiam a defesa dos direitos desse grupo vulnerável.
A ministra do STJ Nancy Andrighi, destaca que, nas ações que envolvem interesse da infância e da juventude, não são os direitos dos pais ou responsáveis que devem ser observados. “É a criança que deve ter assegurado o direito de ser cuidada pelos pais ou, ainda, quando esses não manifestam interesse ou condições para tanto, pela família substituta, tudo conforme balizas definidas no artigo 227 da Constituição Federal, que seguem estabelecidas nos artigos 3º, 4º e 5º do ECA.”
Confira, a seguir, julgados neste sentido. Os números dos processos citados não são divulgados em razão de segredo judicial.
Conflito de competência
Recentemente, a Segunda Seção estabeleceu a competência do juízo da localidade onde uma adolescente se encontrava – e não o do domicílio de sua guardiã legal – para examinar medidas protetivas propostas pelo Ministério Público estadual. A jovem estava sob a guarda legal de uma mulher, em uma cidade do Paraná, desde a morte de sua mãe biológica, quando tinha quatro meses de idade.
Em razão da denúncia de violência física e psicológica por parte da guardiã, o Ministério Público estadual ajuizou medida protetiva em favor da adolescente, tendo o juízo da localidade determinado o acolhimento emergencial em abrigo municipal. Em menos de um mês, a adolescente fugiu e se abrigou com parentes biológicos maternos residentes no Rio Grande do Sul – o que levou o juízo do Paraná a declinar da competência para julgar a medida protetiva.
O juízo da cidade gaúcha, por sua vez, suscitou o conflito de competência perante o STJ, ao argumento de que o artigo 147, incisos I e II, do ECA estabelece que o foro competente para apreciar e julgar medidas, ações e procedimentos que tutelam interesses, direitos e garantias legais é determinado pelo domicílio dos pais ou responsáveis. Segundo o relator do caso, ministro Marco Buzzi, a orientação pacífica do colegiado é no sentido de que, em se tratando de questionamentos acerca da guarda, prevalecerá a competência do foro da comarca daquele que detém a guarda legal da criança ou do adolescente (Súmula 383).
O ministro ponderou que o caso dizia respeito à competência para julgar medida protetiva em favor de adolescente em situação de risco, e não à discussão sobre guarda legal. Em situações semelhantes, o tribunal considerou mais adequada a declaração de competência do juízo do local onde se encontrava o menor, uma vez que, pela proximidade, seria possível atender de maneira mais eficaz aos objetivos do ECA, bem como entregar a prestação jurisdicional de forma rápida e efetiva. “Na resolução de conflitos que versam sobre o atendimento das necessidades de crianças e adolescentes, o norte hermenêutico deve ser sempre o interesse do menor.”
Segundo ele, tendo em vista esse princípio e ainda o princípio do juízo imediato (artigo 147 do ECA), a fixação da competência no juízo que tem a possibilidade de interação mais próxima com o menor e seus responsáveis viabiliza a concretização dos objetivos traçados na lei.
Afastamento familiar e ação de guarda
Mesmo que a sentença em ação de afastamento de convívio familiar transite em julgado, com a determinação de acolhimento institucional do menor, é possível o ajuizamento de ação de guarda por quem pretende reavê-la. Este foi o entendimento definido pela Terceira Turma no ano passado ao dar provimento ao recurso de um casal para determinar o prosseguimento da ação de guarda ajuizada em abril de 2018, na qual pretendiam reaver a guarda que exerciam irregularmente sobre uma criança no período de 2014 a 2016 – quando o Ministério Público obteve tutela antecipatória em ação de afastamento de convívio familiar para o acolhimento institucional da menor.
A ação de guarda foi extinta. O Tribunal de Justiça de São Paulo – TJSP entendeu que o casal careceria de interesse processual, na modalidade utilidade, para rediscutir as mesmas questões que já haviam sido objeto de decisão na ação de afastamento.
Segundo a relatora, ministra Nancy Andrighi, as ações de guarda e de afastamento do convívio familiar têm pretensões ambivalentes. Enquanto na primeira pretende-se exercer o direito de proteção da pessoa dos filhos (guarda sob a ótica do poder familiar) ou de quem, em situação de risco, demande cuidados especiais (guarda sob a ótica assistencial); na segunda, pretende-se a cessação ou a modificação da guarda em razão de risco para a pessoa que deve ser preservada.
Adoção à brasileira
Com relação a adoção à brasileira, tema sensível e caro ao Direito de Família no país, as turmas de direito privado que compõem a Segunda Seção do STJ adotam o entendimento de que, “salvo evidente risco à integridade física ou psíquica do menor, não é de seu melhor interesse o acolhimento institucional, devendo ser prestigiada, sempre que possível, a sua manutenção em um ambiente de natureza familiar, desde que este se mostre confiável e seguro, capaz de recebê-lo com conforto, zelo e afeto”.
Neste sentido, em agosto de 2020, a Quarta Turma confirmou liminar e concedeu habeas corpus para revogar a decisão que, no curso da ação de nulidade do registro civil de um bebê de um ano e seis meses, determinou o seu acolhimento institucional. O entendimento é de que, mesmo com fortes indícios de irregularidades na adoção, inclusive com suspeita de pagamento, a transferência para um abrigo não seria a solução mais recomendada.
No caso concreto, o STJ permitiu a permanência da criança com a família adotiva até a conclusão da ação de nulidade do registro. De acordo com a ministra Isabel Gallotti, relatora, deveria prevalecer no caso o princípio do melhor interesse do menor, que conviveu desde o nascimento com a mãe registral.
Segundo a ministra, a criança foi entregue de forma irregular para a mãe registral logo após o parto. A decisão de acolhimento institucional foi proferida quando ela contava com oito meses de vida. Por força de liminar deferida pela Presidência do STJ, o infante voltou ao convívio da família registral, após ter passado poucos dias no abrigo.
A ministra Gallotti pontuou que a mãe registral e sua companheira estavam inscritas no Cadastro Nacional de Adoção, e não havia menção de risco algum à integridade física e psicológica do infante. Além disso, estava comprovado no processo que a mãe biológica era uma adolescente usuária de drogas que não tinha condições nem interesse na criação do filho.
Em decisão oposta, a Terceira Turma negou provimento ao recurso em habeas corpus interposto por uma mulher acusada de praticar adoção à brasileira, no qual pedia a guarda da criança. O Tribunal considera que, em situações excepcionais, quando os laços socioafetivos ainda não se consolidaram, e sendo a adoção irregular, a jurisprudência recomenda o acolhimento institucional, tanto para evitar o estreitamento do vínculo afetivo quanto para resguardar a aplicação da lei.
Neste processo, a mãe biológica do infante foi convencida a deixá-lo aos cuidados da filha da idosa para quem trabalhava, até resolver problemas financeiros. Algum tempo depois, foi demitida por mensagem de aplicativo e não teve o filho de volta. A filha da idosa ajuizou ação para adotar a criança, mas o juízo de primeiro grau rejeitou o pedido por reconhecer que ela agiu de má-fé, aproveitando-se das dificuldades financeiras da mãe biológica para obter a guarda de fato. Na tentativa de evitar o recolhimento a uma instituição, a guardiã ajuizou habeas corpus no tribunal estadual, o qual foi denegado.
Para o relator do recurso, ministro Marco Aurélio Bellizze, as conclusões da Justiça de primeiro e segundo graus deixam clara a necessidade de afastar a criança dos cuidados da mulher que tentou praticar a adoção irregular. Ele ponderou ainda que o imediato acolhimento da criança em abrigo, na cidade onde residia sua mãe, poderia oferecer a proteção integral e viabilizar a reaproximação gradativa dos dois.
Cuidado na pandemia
A pandemia de Covid-19 levou a Terceira Turma a conceder habeas corpus para permitir à família substituta acolher novamente uma criança, que havia sido internada em abrigo após decisão judicial fundamentada na tese de que o casal buscava burlar o procedimento de adoção legalmente previsto, incorrendo na prática de adoção à brasileira. O colegiado concluiu que a ameaça da doença era mais uma razão para manter a criança com a família que cuidava dela desde o nascimento – pelo menos até a conclusão do processo de adoção.
Conforme consta nos autos, a família substituta alegou não se tratar de adoção à brasileira, tendo em vista as suas tentativas de regularizar a adoção do infante. Justificaram ainda a fragilidade pulmonar da criança, o que a tornaria mais vulnerável diante dos riscos de contaminação pelo novo coronavírus caso permanecesse em abrigo.
O relator do caso, ministro Villas Bôas Cueva, destacou que a convivência familiar é direito fundamental das crianças e adolescentes, previsto pela Constituição de 1988, sendo que “a afetividade, no âmago familiar, é tão ou mais importante do que a consanguinidade”.
O magistrado considerou que, em virtude da pandemia de Covid-19, é preferível manter a criança em uma família que a deseja como membro do que em um abrigo. Além disso, chamou atenção para as dificuldades que envolvem o procedimento de adoção no Brasil, que é “burocrático e demorado”.
Cueva frisou, em seu voto, que o papel do Judiciário é aferir, a cada caso, como se realizará o bem-estar de crianças e adolescentes entregues por familiares, informalmente, aos cuidados de padrinhos ou terceiros interessados em exercer o poder familiar – o que, notoriamente, burla o cadastro e pode estimular práticas dissimuladas e criminosas, a exemplo da conduta tipificada no artigo 242 do Código Penal.
Indenização após fracasso da adoção
Em maio de 2021, o IBDFAM noticiou que uma mulher que foi adotada na infância e retornou ao acolhimento institucional na adolescência teve reconhecido o direito de ser indenizada em R$ 5 mil pelo casal adotante, conforme decisão da Terceira Turma. Vinda de destituição familiar anterior, ela havia sido adotada aos nove anos de idade por um casal com 55 e 85 anos, que desistiu de levar adiante a adoção e praticou atos que acabaram resultando na destituição do poder familiar.
Apesar de não se descartar a falha do Estado no processo de concessão e acompanhamento da adoção, o Colegiado reconheceu que não é possível afastar a responsabilidade civil dos pais adotivos, os quais criaram uma situação propícia à propositura da ação de destituição do poder familiar pelo Ministério Público, cuja consequência foi o retorno da jovem, então com 14 anos, ao acolhimento institucional.
“O filho decorrente da adoção não é uma espécie de produto que se escolhe na prateleira e que pode ser devolvido se se constatar a existência de vícios ocultos”, apontou a ministra Nancy Andrighi, no voto que foi seguido pela maioria da turma.
Vanguarda
O juiz Fernando Moreira, vice-presidente da Comissão de Adoção do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, considera que o STJ tem consolidado posição de vanguarda em matéria de destituição do poder familiar e colocação em família substituta, privilegiando o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente. “Isso fica evidente em todas as decisões em que se prestigia a guarda ou a adoção em detrimento do acolhimento institucional, inclusive nos casos de adoção irregular, desde que os vínculos afetivos estejam consolidados.”
Segundo o magistrado, em tempos de pandemia, a possibilidade concreta de contágio pela Covid-19 foi um argumento a mais em favor da desinstitucionalização no país. “A cada dia estou mais convicto de que devemos acabar com o modelo de acolhimento institucional no país, tal como fizemos em relação aos hospícios.”
“Por mais que haja algumas instituições que conseguem fazer um bom trabalho protetivo, uma instituição nunca será uma família. Alguns países, como Itália e Paraguai, já previram em suas legislações prazos para o fim do acolhimento institucional, embora ainda não os tenham concretizado”, pondera o especialista.
Para Fernando, a família acolhedora, garantida no ECA desde 2009, representa um modelo para substituição do acolhimento institucional, “porém ainda enfrenta grandes dificuldades para a sua implementação no país”. “Requer um grande empenho das entidades componentes da rede de proteção na sua efetivação, além da própria sociedade civil.”
“Estudo que publicamos em 2020 revela que, no Estado de Mato Grosso do Sul, apenas 12,65% dos municípios implementaram o programa de família acolhedora, o que não é muito diferente dos demais municípios brasileiros. Ainda que a família acolhedora seja uma boa opção à institucionalização, não se deve esquecer que também se trata de uma opção temporária”, ressalta o juiz.
Para ele, a finalidade deve ser sempre uma família, natural, extensa ou adotiva. “Como se pode ver, ainda temos muito a caminhar se pretendemos a proteção integral.”
“O debate sobre o acolhimento institucional é muito atual e de grande importância para a sociedade, razão pela qual o IBDFAM tem empreendido diversas frentes de estudos, debates, atuação perante os tribunais superiores e o CNJ, além do auxílio na elaboração de novos projetos legislativos sobre a matéria. É importante que se diga que a jurisprudência nacional tem reescrito o ECA, ampliando o sentido da norma para garantir uma maior proteção à criança e ao adolescente”, destaca Fernando.
O juiz entende que é passada a hora de substancial reforma legislativa nos institutos do ECA, sobretudo aqueles ligados à adoção, “de modo que haja uma sintonia entre o texto legal e a jurisprudência nacional, notadamente aquela construída pelo STJ ao longo dos últimos anos”. “Um bom exemplo disso é a necessidade de ampliação das hipóteses de adoção intuitu personae, previstas no art. 50, §13, do ECA, que abordaremos mais detidamente por ocasião XIII Congresso Brasileiro de Direito das Famílias e Sucessões do IBDFAM.”
Atendimento à imprensa: ascom@ibdfam.org.br
Decisão: 21/10/2021